segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Por que sou a favor das cotas raciais?






Quebranto

às vezes sou o policial
que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada

às vezes sou o zelador
não me deixando entrar
em mim mesmo
a não ser pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredito

às vezes sou o amor
que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio

às vezes as migalhas do que
sonhei e não comi
outras o bem-te-vi
com olhos vidrados
trinando tristezas

um dia fui abolição que me
lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição que me promulgo
a cada instante

também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser

às vezes faço questão
de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria
concebida como um eterno começo

fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo
e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio o ponto em que me entrego.

Às vezes!...

(Cuti)

Só para ilustrar o pensamento, vou contar uma historinha real, e faço isso como contaria à polícia:

"Uma senhora que conhecemos - compreenda-se que se trata de 'massa de manobra' - certo dia, fazia compras em um supermercado. Observando as pessoas do lugar, reparou numa linda criancinha loura, olhos claros e pobre, acompanhada por sua mãe, também pobre. Parou um minuto para entender o que se passava e por que a mãe negava o o que a criança pedia. A senhora de que falamos se sensibilizou ao propor uma conversa com a mãe e constatar que a família morava numa favela e passava necessidades e fez questão de fazer uma pequena compra doando à família branca. Ao chegar em casa, relatando o fato para seu marido e filhos, a senhora usou exatamente estas palavras: 'era tão triste ver aquela criança tão linda, tão loira, sabendo que ela é favelada! Porque 'preto' eu entendo, mas aquela criança tão branca não merece morar na favela e ser pobre."

Ao contrário do que diz Ali Kamel em sua obra-prima "Não Somos Racistas", nós somos racistas sim (não 'nós'=eu, nós como sociedade). Há um Apartheid racial implícito no Brasil. Há quem não se choque com um negro pobre e favelado porque considera esta uma situação 'normal' no País e perfeitamente tolerável, dizem ou pensam ou agem inconscientemente como a concordarem que lugar de negro é na favela ou, quando muito, em sub-empregos.

Enquanto se chocam com um loirinho pobre favelado, se chocam também com um negro na universidade. Este é o pensamento escravocrata da classe dominante, ainda que eles digam serem 'contra a escravidão', como se pudessem ser a favor dela.

O que quero dizer com isso tudo é que, mesmo que um branco seja pobre e/ou favelado (uso 'favelado' pra ilustrar o preconceito da historinha que contei), ele encontrará uma sociedade mais 'amiga', mais pacífica e 'compreensiva' com sua condição, afinal, 'ele está no lugar errado porque lugar de branco é na alta classe social'. Então brancos pobres e negros pobres disputando o mercado de trabalho, por exemplo, mostram o quão errado está o livro do senhor Kamel, basta olhar as pesquisas salariais.

Temos uma sociedade altamente preconceituosa em termos de raça ou realidade social, mas quando esta resolve se solidarizar, o faz por não entender um branco lourinho na favela, põe-se em compaixão pelo branco pobre, que está 'num antro reservado aos negros'.

Para esta sociedade, um negro pobre está dentro da 'normalidade social', é o que deve acontecer. E no momento em que um governo abre a possibilidade de esta população ter acesso mais facilitado à universidade, com perspectivas de um futuro melhor para si e para sua família, surgem os mais diversos argumentos dignos de uma KKK. Há quem chegue a falar em 'darwinismo': que dar aos negros uma chance maior de frequentarem a faculdade pode ser 'racismo contra eles mesmos'. A quem desejam enganar? Há também aqueles que dizem que o sistema de cotas é racismo com o branco pobre, há os que fazem testes de DNA, provando que 'de tudo tem um pouco' e que, por isso, as cotas não se encaixam na realidade. O que faltou a esta gente foi pensar 'a nível de' fenótipo hehe.

O que eu acho mais engraçado é que há um pouco mais de um século atrás, quando a escravidão vigorava no país, ninguém fazia raciocínios genéticos para não escravizarem os negros, isto é, negro 'nem sequer tinha alma' e quando havia filhos de brancos e negros, estes eram escravizados do mesmo modo, sem considerações genéticas ou de parentesco. Não falo do DNA, porque isso 'não existia' naquela época, mas se existisse, seria utilizado para argumentar de alguma forma a legalidade da escravidão.

Há muitas coisas e muitos enfoques sobre este tema e nós poderíamos ficar horas a fio aqui discutindo isto, mas só para resumir bem e concluir meu pensamento, é preciso lembrar-se que, com a abolição no Brasil, ao invés de os negros serem indenizados, como aconteceu nos EUA, seus ex-'donos' é que receberam indenização e nunca houve uma política de integração e inclusão deste povo. Há uma necessidade de reparação sobre este erro do passado sim, que já deveria ter acontecido há muitos anos, e não me venham falar em 'melhorar o ensino público', porque isso é lindo e extremamente necessário, mas os jovens desta geração, que aí estão, não conseguem voltar no tempo para ter acesso ao ensino de base de qualidade.

Não me falem em darwinismo nem da porcentagem de europeu e negro que há em cada ser humano e não me botem negro 'de alma branca' para falar em alguma emissora que acha injusto o sistema de cotas, porque todos os negros que eu conheço são a favor deste projeto de inclusão e os que eu vejo falarem contra, são geralmente 'massa de manobra', e o que há de pior é um branco falando pela voz de um negro sobre os direitos deste. Nós não somos todos iguais, como diz a Constituição, mas lutamos para que sejamos e, para isto, é preciso ouvir as vozes dos negros, das mulheres, dos índios, e não dos brancos ou da classe dominante que pretende ser seu 'porta-vozes'.

Há poucas senhoras no mundo que se assustam com a miséria nas favelas, na periferia, com a violência, com a falta de saúde e saneamento básico a menos que algum lourinho sofra com tudo isso, aí tira-se o loirinho da favela ao invés de retirar a favela da vida desta população. Não me entendam racista, de forma alguma: 'miséria é miséria em qualquer canto', como diz a música, e para todo mundo, negros e brancos. Mas a população negra precisa ser reparada e 'já foi tarde'.